Carta semi aberta
Carta semi aberta
Escrevi uma carta aberta com a inspiração e apoio das colegas Maria Fontes e Melina Soares, dirigida carta esta “ao corpo eleição”, “à alma cindida”, “a uma espécie de democracia dividida”, “ao adoecimento dos tempos atuais e tão dilacerantes”. Chorei muito últimas semanas, em um de alegria, tristeza e uma dor de alma mesmo. Compartilhei angústias pessoais, declarei minha visão como mulher, mãe e terapeuta e também li, ouvi e assisti tudo tão perto quanto pude sustentar. Fui abraçada e chorei mais.
Hoje nessa segunda carta lhes falo sobre necropolitica do ponto de vista metafísico; quero falar mais uma vez sobre consciência de separação do ponto de vista do BodyTalk e quero lhes falar sobre a dor da identificação.
Normalmente, fomos acostumados a nos identificar com o que acreditamos. Por exemplo, me identifico com o papel de mãe e isso parece me definir pois, ao cuidar de meus filhos, me misturo com a imagem que tenho/sou de mãe. Nossa identidade parece ser constituída de parte dos papéis que desempenhamos e, sobretudo, das crenças depositadas nesses papéis. Para ser uma boa mãe, meus filhos precisam estar bem, ou seja, se não estiverem, eu não seria uma boa mãe. Ou se alguém não os tratar bem, a responsabilidade seria minha. Coisas estas do patriarcado apontam para uma identificação sólida de uma “certa” mãe. Conceitos de familia estão sendo inclusive colocados no debate após um período em que a principal doença que nos separou parece ter sido justamente o congelamento das crenças que nos definem – como mãe, como eleitor, como brasileiro, sobretudo como brasileiras e brasileiros, brasileires se quiserem. Nossas identidades estiveram congeladas e estão se aquecendo.
A rigidez ou supremacia de crenças, ou ainda, a forma com a qual são impostas não é somente a definição de uma doença física, emocional ou psíquica: é a definição de um movimento patológico social a que podemos chamar de necropolitica. Estamos sendo mortificados por um congelamento de uma identidade aceita, razoável, adequada, apropriada. Ou seja, estamos morrendo simbolicamente por nos identificar com um congelamento.
Mas observe comigo; definições não são para congelar o pensamento. Ao contrário, pensar sobre os fatos e movimentos do pensamento e da alma são justamente para retomar a vida, devolver nova força, rever, reconsiderar as crenças pois normalmente se congelados, são limitantes. E limitação, estagnação é o prenúncio de uma morte. Matar a alma de alguém é deixá-lo congelada em sua própria crença, ou reforça-lá a tal modo que a cegueira é coletiva. Torna-se mesmo uma necropolitica. E uma morte da alma também.
A luz da metafísica das terapias integrativas e sistêmicas, ou mesmo à ancestral luz de escritos reflexivos sobre a alma, podemos refletir isso ainda de outro jeito, a fim de ajudarmo-nos a descongelar.
Nossa mente é treinada a nos compreender a partir dessas crenças e faz isso repetindo a suposta realidade: “serei boa mae se….”. Identifico-me com isso, colo nessa imagem com um ego carente, me desespero e choro compulsivamente se der errado, se eu falhar, se me julgarem a olhos externos e … adivinhe? Me perco. Perco discernimento. Perco clareza. Sou fácil para ser vitimizado ou mesmo explorado no meu maior atributo humano: liberdade.
Aquilo que trouxe na última carta como manifesto da doença de separação torna-se uma não-individuação. Não sou mais “eu” de tanto tentar ser um “eu que querem que eu seja”. Me torno a morte desse eu político. Torno-me uma voz apagada na multidão, diria quase ridícula – não pelo adjetivo em si mas pelo deslocamento doentio da clareza e do entendimento. Perdi já inclusive a chance de compreensão, crítica, distanciamento. Torno-me algo que não existe porque é a própria morte. Me apago. Torno-me um apelido social de desprezo. Me mato no exercício de ser eu. Uma incronguência. Uma doença social.
Essa é a doença que vemos hoje. Diferente da consciência de separação que nos ensina que não estamos separados do todo, nos perdemos nele e nos apagamos.
Qual antídoto?
Recuperar nossa sabedoria de individuação. Quem você é? Você é em que você votou? Você é o adjetivo ou o suposto julgamento em quem você votou? Ou você é a ideia que representa quem você votou? Pare e reflita. Você votou numa crença personificada ou numa ideia em evolução? Você votou no embotamento de toda uma sociedade e uma morte do discernimento ou você votou na ideia de descongelar crenças, ampliar limites, inclusive os seus?
No limite dessa carta semi aberta, não quero propor mais dissidências ou separações. As perguntas acima são em si limitantes – porque não é ou e ou? É e. Somos os mesmos que, tendo votado em um ou noutro, precisamos reencarnar a rota de descongelamento da nossa raiva, da nossa tristeza, da nossa necropolitica, porque isso é o que nos adoeceu e poderá continuar perpetuando dor e separação.
Essa carta não é mais e nem um manifesto – é um convite. Ao descongelamento. A uma espiritualidade respeitosa. A uma cura que é social. A vida em sociedade. Vida e não morte.
E como toda cura, segundo essa presente visão, não acontece (só) com remédios e prescrições. Acontece num processo e auto conhecimento. Como li em alguns memes, saímos da UTI da alma social e com sorte vamos reencontrar a nós mesmos, em nossa casa, com alteridade e comunhão de escolhas. Vamos exercitar uma visão crítica que não nos induza a se identificar com o que nos amortece, tirando nosso discernimento, mas a nos religar (uso poroposital dessa palavra) com uma alma íntegra de todos os usos de si: Eu Sou. A expressão metafísica para uma alma em processo de conhecimento de si não por aquilo a que a aprisiona e adoece, mas aquilo que pode uni-lá a um todo e revigora-lá. “Eu sou”.
Que sejamos conscientes! Não somos o que nos identificamos. Somos pura consciência se com a oportunidade real (e não imperativa) de exercer pleno exercício de si, livre.
Nirvana Marinho
terapeuta